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MARGARIDA CONTRA TANQUES EM PROCESSO DE CRIAÇÃO CAPÍTULO 01- O ESPAÇO!

I

introdução

Estamos de volta. Houveram tempos de rasteiras bruscas, de quedas doloridas, de choros. Foram mais de 150 dias que nossos corpos não puderam se tocar, não puderam se encontrar, mas não perderam a necessidade de se expressar.

Esses tempos pandêmicos encheram nossas vidas de superficialidade, ardendo nossos olhos, cansando nossas mentes, causando ansiedades, estresses... Foram tempos de faltas. A falta do abraço do outro, do toque, do aperto de mão, da respiração unida, da troca de calor, da imersão no olhar da companheira de cena. Mas é isso... Não podíamos parar e não paramos. Logo nos reinventamos e fomos nos aparando em nossa vontade de fazer arte. Como artistas inquietos, inventamos e reinventamos modos de existir e resistir. Dos trabalhos para teatro criamos a hibridez entre as artes quando começamos a namorar com o audiovisual e suas possibilidades.

E foi através da rede web que se tornou possível manter alguma conexão entre essas mentes inflamadas, mesmo que de forma virtual. Pudemos deixar nossos corpos conversarem e matar a saudade de estarmos juntos, através daquela pequena câmera do celular ou do computador. Foi dessa maneira que o Coletivo Inflamável conseguiu sobreviver às limitações do isolamento social e dar continuidade aos seus experimentos.

Estamos mais uma vez retomando o mergulho nesse processo de montagem, processo esse que teve início em fevereiro de 2020. Interrompidos, como tantos outros processos artísticos de outros grupos culturais da cidade, estamos nos aqui aproveitando as retomadas para voltar aos encontros. Mais que voltar aos encontros, estamos retomando nosso contato com o fazer teatral. Texto, ator, ensaio etc. A velha rotina do “não posso, tenho ensaio”. Que saudade de poder dizer tais palavras... E foi aquecendo nosso coração que voltamos aos abraços longos, chorosos que matam saudades, cobertos de álcool em gel e máscaras.

Esse é o sentimento inicial que nos toma de conta nessa retomada. Gratos por estarmos vivos, gratos por termos possibilidade de estarmos juntos mais uma vez. Se existe uma energia que rege o universo, que possibilitou esse reencontro, obrigada!

Quem é Margarida?

Margarida contra tanques é uma peça livremente inspirada na história de Margarida Maria Alves, primeira líder sindical a assumir uma presidência de sindicato, assassinada na década de 80. Margarida defendia os direitos dos trabalhadores rurais, dentro do ambiente de uma Usina que se chamava “Tanques”. Esse é o mote principal da dramaturgia deste espetáculo.

Mesmo antes das interrupções das atividades do coletivo, a dramaturgia do espetáculo já havia sido construída. Ao menos o seu mote principal. Falar de uma mulher nordestina era uma necessidade observada pelo coletivo, visto que pouco se fala de mulheres de referência loca, nordestina. E Margarida é símbolo de luta, principalmente dos trabalhadores rurais que se reúnem de dois em dois anos para A Marcha das Margaridas em direção à Brasília.

Margarida foi gigante na luta pelas garantias dos direitos dos trabalhadores, assegurando por meio da lei que mais de setenta funcionários de uma Usina tivessem suas carteiras assinadas. Sua mais famosa e forte frase “É melhor morrer na luta, do que morrer de fome” foi assumida por ela até as últimas consequências. Brutalmente assassinada dentro de sua própria casa, Margarida é semente. E assim


como tantas outras mulheres que vieram antes e depois dela, essas sementes florescem nessas terras inóspitas e secas.

Toda essa temática nos motiva a pensar numa encenação para a rua, para o espaço aberto. Falar de Margarida e fazer o espetáculo na rua se mostra mais coerente por seu caráter acessível e popular. Dito isto, nosso primeiro território de investigação é a rua.

Arado- Fertilidades do Espaço

Na rua estamos habitando novamente essa cidade há meses abandonada. E redescobrindo o que outrora era tão comum que se tornou invisível, como uma igreja e sua arquitetura, um escorrega de criança, telefones públicos deteriorados, arvores derrubadas ... A rua, o espaço aberto, a praça pública, a roça, a plantação, a natureza, todos esses espaços abertos são potencialidades para criação deste espetáculo. Arar esse território fértil é o primeiro movimento para nossas investigações iniciais.

Em um trabalho realizado na rua, existem dois movimentos complexos que se apresentam como possibilidades de criação. 1- Criar a partir das narrativas que o próprio espaço suscita e, 2- Dialogar com o espaço o trabalho artístico já desenvolvido. Estes dois movimentos são necessários de se entender para quem quer usar a rua como espaço para desenvolvimento de seus trabalhos artísticos.

O ESPAÇO COMO “NARRATIVA” PARA A CRIAÇÃO

Todo espaço é território criativo. Todo espaço é passível de criação dramatúrgica. Cada lugar que passamos nos contam uma história e como tal, nos possibilitam a criação. O que aquele espaço gera de dispositivo para inventar? O que aquele espaço gera de criação artística?

A partir dessas perguntas orientadoras, os artistas do coletivo observam o território. Depois de escolherem algum determinado espaço, eles ficam livres para criar qualquer tipo de narrativa performática que o espaço suscite. Nestes espaços podemos analisar sua topografia, suas diferentes arquiteturas e toda a geografia implicada naquele local. Como os espaços são recortados, divididos? Como as estruturas se levantam do solo e como elas tomam outros significados? Como que essa arquitetura traz significados sociais?

O brinquedo público, a parede da igreja, a calçada dos fundos da mesma igreja, um conjunto de telefones públicos destruídos e um monte de arvores cortadas são os primeiros espaços a terem suas narrativas reveladas. Além disso, a partir dos trabalhos apresentados, também tivemos a oportunidade de observar o quanto do íntimo de cada ator podia ser identificada nas investigações artísticas.

O espaço infantil é memória de um adulto que teve em sua infância, privação de liberdade para poder brincar livremente pelo “terreiro”. O que é um adulto, sentado naquele espaço, demonstrando uma feição de medo? Este espaço que é memória e atualidade ao mesmo tempo é dispositivo para diversas leituras. O olhar de um espectador desavisado condenará aquele adulto posicionado naquele brinquedo destinado à criança? O espaço do brinquedo, que já estava localizado naquela praça, propiciou ao ator o resgate de uma memória afetiva e que foi dispositivo para montagem de sua cena. O espaço foi ferramenta principal de criação. A lembrança das proibições e medos da sua figura paterna foi representada pelo ator. Nítido, simples e objetivo. O ator sensível teve a percepção de ouvir a narrativa do espaço e a sua própria.

Assim foi também no quadrado da igreja. A brincadeira para este ator se mostrou através dos movimentos. Diferentemente do ator que explorou o brinquedo, este trabalhou com mais evidência os vetores, movimentos, alturas e velocidades. Com um olhar mais voltado para a estética, os movimentos que foram criados pelo ator trouxe também diversas narrativas. Por mais que o ator não tenha tido o objetivo de narrar alguma história, o espaço por si só dá conta dessa narrativa. Aquele corpo que se movimenta de formas repetidas, “corretas”, limpas, tem um conjunto de significados somente pelo fato dessa parede ser de um lugar religioso que é a igreja. Se todos os movimentos propostos fossem colocados em outra parede, certamente haveriam diferentes narrativas construídas.

Outras narrativas foram descobertas também pela sensibilidade dos atores que tiveram a percepção de olhar, sentir e criar. Assim como o ator que se dedicou a investigar a alta calçada por trás da igreja. Em um movimento circular, trazendo a tona uma relação entre diversas religiosidades, o trabalho desenvolvido pelo ator também mostrou relação com as diferentes topografias e arquiteturas do espaço escolhido.

As narrativas descobertas por uma das atrizes que debruçou sua investigação em três orelhões abandonados foram rapidamente identificadas pela plateia que assistiu a sua cena. Quantas histórias passaram por ali?

Quantas notícias, conversas e relações foram estreitadas ou distanciadas por aqueles grandes objetos obsoletos?

E por fim, o trabalho de escuta de uma das atrizes extrapolou a sensibilidade com o espaço e se estendeu para os moradores daquele território. A partir dessa escuta e de uma identificação com o ambiente, houve ali uma relação de pessoalidade e teatro. Essa pessoalidade trouxe uma aproximação com o público e a sua narrativa. Esse processo inicial demonstra o quão sensíveis precisamos ser para perceber as narrativas que o espaço já possibilita. A percepção parte de nossa sensibilidade.

DIÁLOGO COM O ESPAÇO


Um outro movimento de criação com o espaço também precisa ser analisado. E se eu já tenho um trabalho artístico, vou ter que abandonar ele pra começar tudo de novo a cada espaço diferente que eu tiver? Por certo que não. Dentro de um trabalho nos espaços abertos, é necessário também entender como podemos dialogar com o ambiente. Não seria adequar seu trabalho artístico, mas dialogar com o ambiente que irá recebe-lo.

Um trabalho de teatro de rua que entende seu lugar ou não lugar, dentro de um espaço que já tem sua própria rotina é crucial para dialogar e não simplesmente ocupar. Sendo assim, o próximo passo nesse processo de investigação da rua é esse diálogo das produções artísticas levantadas em outra praça para serem apresentadas naquele novo espaço. Os trabalhos no parquinho infantil, na parede da igreja, na calçada religiosa, no conjunto de orelhões e no monte de galhos de arvore cortados deveriam ser apresentados naquele novo espaço.

Saíram para desbravar e logo estavam imersos em suas criações. O ator que havia apresentado no escorregador do brinquedo da praça logo encontrou um monte de terra e um grande papelão para ser seu escorregador. O outro que fez a cena na parede recortada da igreja, encontrou um espaço entre duas arvores distribuídas na frente dessa nova igreja, desse outro espaço. O ator que fez o seu experimento anterior em uma alta calçada nos fundos de uma igreja, aproveitou que esta outra praça também havia uma e jogou sua cena para um espaço circular que havia no espaço logo atrás.

Já a atriz que havia trabalhado com o conjunto de orelhões destruídos transformou sua cena para ser trabalhada em uma arvore morta, mesmo que ainda de pé. E por fim, a atriz que havia realizado sua cena anterior se relacionando com galhos cortados, teve grande parte da sua cena se relacionando com um viaduto e todo o seu concreto. Todo esse exercício foi importante para entender o quanto também é necessário sempre dialogar com os espaços que vamos nos fazer presente. Dialogar e não simplesmente ocupar.

Tudo isso faz parte do processo de montagem desse nosso espetáculo e é nossa busca incendiária para driblar essa pandemia. Desde setembro estamos mergulhados nessa fase do coletivo e através do edital de manutenção de grupos e coletivos do Centro Cultural Bom Jardim, tivemos a oportunidade de conseguir um financiamento para manter nossas atividades. Estamos caminhando para a criação de dois frutos dessa relação Inflamável e CCBJ: a peça Margarida Contra Tanques e a web-série de vídeos performáticos que nascem daquilo que surge durante o processo de montagem do espetáculo. Logo, logo iremos ver nascer nossa menina no mundo e iremos florescer como flores nesse jardim de Margaridas que será fortemente poético, pulsante e vivo.







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