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INFLAMÁVEL

Procissão para falência e o ator em aprendizado



Através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente.” Antonin Artaud.

No dia 29 de agosto de 2020, o Coletivo Inflamável realizou uma performance pelo centro da cidade que chamou de “Procissão para a Falência”. Uma cena infectada. O país sempre teve dificuldades de respirar. A periferia e, por consequência, o trabalhador, sempre foram sufocados pela lógica do mercado, que é a película que embrulha o mundo e rege a vida há tempos. Os corpos empobrecidos, subalternizados, são sempre os corpos que dentro dessa lógica podem correr os riscos e ameaças humanas e não humana na terra. Salve-se quem puder! O povo que gira essa grande máquina é tratado como peça que em caso de defeito troca-se por outra. Assim, numa pandemia, em busca de salvar o que realmente importa nesses tempos- para eles- o mercado e o lucro, mais uma vez a população é entregue a sorte do acaso. É demais para os cofres públicos um auxílio e é fácil aos mesmos cofres a liberação de mais de bilhões em dinheiro para salvar bancos e empresas. Salve-se quem puder!

E assim fomos para a rua. Assim fomos nos encontrar após cinco meses de distanciamento e sem ações presenciais. Depois de cinco meses o Coletivo Inflamável se reencontra já para a realização desta performance. “Tinha tudo para ser um dia normal. Ou, como já se fala por ai... novo normal. Uma manhã de sábado com um sol maravilho de quente, e um céu azul anil. E nós se enrolando com filme plástico. Loucura? Não senhor. Loucura é ver um monte de pessoas para cima e para baixo sem se preocupar ou se proteger do coronavírus.” Foi nessa manhã de sol que descreve Naldo de Freitas que o Coletivo se reuniu na praça do metrô do centro da cidade, se colocou em círculo e começou a se cobrir com plástico filme, dos pés à cabeça.

A ansiedade para a realização deste trabalho é descrito por Brena Canto “Se apresentar na rua por si só já é um desafio e da forma como foi feita a performance me senti mais desafiada ainda. A princípio a ideia de fazer a performance, confesso que fiquei receosa primeiro por ser na rua, segundo por ser no centro, onde já sabíamos que ia estar cheio de gente. A minha preocupação era em relação a pandemia/quarentena que estamos vivendo, mas ao mesmo tempo veio a ansiedade de querer mostrar, dizer e fazer o que fizemos.”

Além da ansiedade dos atores em relação ao trabalho, havia também a dúvida acerca das reações do público. Lu Sales diz “Mesmo a gente tendo um roteiro prévio, eu não consegui imaginar como seria nosso percurso, eu tentei ir sem muito pensamento e curtir. Na verdade, não sabia nem como íamos colocar o plástico, como ele ia ficar no meu corpo, se eu iria conseguir aguentar aquele negoço grudando em mim, se eu não ia ficar sufocada. Um dos momentos mais marcantes para mim foi no começo, ali na feira, quando ainda estávamos nos transformando naquele corpo performático. Quando as pessoas viam a gente se vestir de plástico, era engraçado e satisfatório vê a reação deles.” Interessante perceber que por mais que tenhamos um roteiro estabelecido, um texto para executar ou cena ensaiada para apresentar, dificilmente teremos domínio das possíveis reações do público. Ele, o público, está em seu ambiente normal, os anormais somos nós. Nós que estamos ali interrompendo o fluxo natural de seus corpos. Só o fato de estarmos no meio de uma praça em círculo, com diversos ambulantes ao redor, nos coloca como foco.

Esse olhar que despertamos, hora de curiosidade, hora de desdém foram reações que provocamos no público. Aurianderson Amaro nos diz “Foi interessante escutar as pessoas, perceber os olhares de dúvida, de desdenho, de negação, de apoio, de entendimento! Ouvir as vaias, as perguntas, as sugestões. As pessoas se desviando de nós com nojo, ou dando lugar pra gente passar. Outros se aproximando, tirando fotos, filmando, perguntando.” A falta de controle dessas reações foram sentidas pelo Coletivo como também relata Ítalo Saldanha “Uma das primeiras coisas que senti foi prazer em estar na rua e no meio do povo. Me senti acolhido, e presente ali. Ao mesmo tempo eu estava receoso com as reações. Receava uma violência por parte de alguém. Fiquei muito contente com as coisas que ouvi, as curiosidades e suposições dos transeuntes. Em alguns momentos, quando começamos a andar fiquei perdido. Senti falta de uma personagem, uma ação pré estabelecida. Mas isso não foi todo o tempo.”

O trabalho realizado na rua, por esta performance, mais que ensinar algo ao público, teve muito aprendizado para os atores. A rua é um espaço completamente inóspito e apaixonante. É preciso estar atento, forte e maleável ao mesmo tempo. E naturalmente isso foi sendo percebido pelo atores durante a performance. Apesar de não termos trabalhado necessariamente com personagens e atuação, foi desenvolvido ali um estado energético que se aproximava mais do natural. O contato com o público, com a praça, com as ruas e o sol fervente naturalmente mudou o roteiro de ações da performance. Se antes havíamos combinado de realizar ações coreografadas, incorporamos simplesmente somente o ato da procissão. Ela já foi suficiente para ver, ouvir e sentir muita coisa. Quem traz um relato sobre isso é Aurianderson Amaro quando diz “Estava me colocando em ponto de ebulição. Confesso que tudo isso é novo pra mim, estou me jogando, experimentando. Eu procurei não imaginar antes como ia ser para não me precipitar. Deixem rolar... E foi bom, foi gostoso, foi instigante! Eu me senti útil, com voz ativa, senti que o mundo me escutou um pouco em relação a tudo que tá acontecendo. Eu estava tão entregue, que quando Kelly chegou pra mim e perguntou se eu me sentia a vontade em entrar em uma loja, eu disse que sim! Vamos! Coisa que anteriormente na reunião eu não me sentia seguro.”

Ao chegar na rua percebemos as reações inesperadas, nossos corpos se adaptando ao espaço e as propostas que iam surgindo, e até o roteiro da performance que foi modificando, entendendo na hora, quais reações eram mais interessantes. Lu Sales nos diz “Foi interessante quando as pessoas vendo a gente se vestir de plástico, nos perguntavam: ‘O que é isso aí einh?’. Ainda mais interessante e curioso, foi nossa reação naquele início de performance, talvez sem saber como deveríamos agir frente a essa pergunta, apenas respondemos que tudo não passava de uma ficção, que não era para se proteger de coronavírus coisa nenhuma…” Sobre essas reações Italo ainda comenta “Percebi que quando era falado para as pessoas que era teatro, as pessoas perdiam o interesse. Como se desencantassem com o que estavam vendo. Senti a necessidade da gente em explicar o trabalho. Não senti que fosse uma necessidade de fazer o público entender, mas sim de se livrar de constrangimento.” Essa reflexão trazida por Ítalo só demonstra o quão atentos e maleáveis precisamos estar em cena porque a partir daí a cena pode ser modificada.

A procissão segue pelas ruas. Corpos cobertos de plástico, realizando seu caminhar nas ruas, suas compras no comércio, aquecendo a economia. “No momento da caminhada eu não conseguia pensar em nada específico, mas sempre me voltava na mente o questionamento “eu to aqui por escolha, e as pessoas que não tem essa escolha? ” Brena Canto. Naldo de Freitas, que estava fazendo o registro da ação, também foi abordado inúmeras vezes “No percurso até a Praça do Ferreira eu fui abordado várias vezes. O povo querendo saber o significado, o motivo de estamos daquele jeito. Foi muito legal o contato com o público, com os artistas de rua. Mickey, Minnie, o Tio do auto falante na praça do Ferreira.”

Por fim, para finalizar a ação, a procissão vai até uma lanchonete matar sua fome. Lu descreve que “A parte do percurso que mais gostei foi a da lanchonete, gosto de uma parada mais orgânica sabe, e lá foi top por causa disso! Vê o espanto tímido das pessoas foi engraçado também. Enquanto na praça ouvimos aquela vaia só a massa, na lanchonete a reação foi mais para dentro – e eu queria lê pensamentos naquela hora para saber o que eles estavam pensando, por trás daqueles olhares de espanto e estranheza. Penso que ali eles podem ter concluído: Ok, estranho isso.”

Após a parada na lanchonete, a performance tem seu fim. Assim como simplesmente começou, também encerramos. Sem grandes atos, sem grandes ações. “Tiramos e viramos pessoas comuns. Transeuntes caminhando pelo centro ao meio dia.” Brena Canto.

Coletivo Inflamável, setembro de 2020

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